quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Redescobrindo Clarice Lispector *

Rifa-se um coração
Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste
em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um
pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia
estava certo quando escreveu...
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero,
é isso que eu espero...".
Um idealista...Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando
relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos que quase dá
pra engolir as orelhas, mas que
também arranca lágrimas
e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para
quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer
para São Pedro na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer"
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por
outro que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate
tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda
não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio,
sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence
seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta



* Agradecimento especial à minha professora de Literatura Wilma Barata Martins, que me apresentou a esta autora aos dezessete anos.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Queimando o sutiã

São exatamente quatro horas da manhã quando comecei a escrever este texto. Acabei de chegar na minha querida casinha e vim correndo para a frente do micro. Com fome e sede, trouxe a minha garrafinha de água e uma barra de cereal. Fiz esta noite o que considero a queima definitiva do meu sutiã. Tomei coragem, impulsionada pelos dizeres de "Sunscreen" (versão brasileira do repórter e gato - atropelado - Pedro Bial): "faça todos os dias uma coisa que realmente te dê medo" (assassinando o português, em prol da linguagem coloquial). Estava com uma amiga no Cherry Blues geriatricamente sentadinhas tomando uma Coca Zero quando resolvemos "vazar" (adoro essa palavra) dali. No meio do caminho para outro local, minha sempre companheira de festas começou a bocejar (se tem uma pessoa que tem esse direito, é ela). Então, a deixei em casa, sem mencionar que pretendia sair "solita". Ela poderia querer me persuadir do contrário ou ir se arrastando só pela parceria ("é bem o teu tipinho"). A caminho do local escolhido, dirigia pensativa: "É hoje que eu acabo com essa frescura! Eu, uma mulher moderna e com iniciativa, vai ficar com medinho DISSO???" Vinte e nove anos na cara e NUNCA havia me aventurado sozinha na noite de Porto Alegre. Confesso que a primeira tentativa, há cerca de um mês, não foi bem sucedida. Fiquei parada um tempo dentro do carro olhando a fila, pensando como me sentiria decadente (auto-crítica mordaz, como só uma fêmea é capaz)no meio daquela multidão. Com o orgulho ferido pela minha covardia, voltei para o conforto do meu lar. Mas hoje foi diferente (e como!). Mãozinhas trêmulas na fila, mexendo na bolsa a toda hora. Controlado o nervosismo inicial, entrei. Porto Alegre é um ovo, como todos sabem. Tive essa exata noção quando encontrei quatro pessoas conhecidas em menos de dez minutos (inclusive uma médica que conhecia de vista). Após puxar papo no banheiro com a referida colega, engatamos um longo papo sobre assuntos diversos e logo tinha feito duas amizades (amiga da amiga).Simples assim. Achei tanta graça que ambas me cumprimentaram pela minha atitude. E me vi ali, à vontade como muitas vezes não consegui mesmo em companhia de amigos. Estava feliz comigo, o que faz toda a diferença. Minhas recentes amizades foram embora e eu fiquei (elogiada novamente). Ao pedir uma Bohemia no balcão (só me faltava coçar o saco, se eu tivesse um), um moço simpático pegou a minha mão e disse "Noooossa, que mão gelada!". Resposta em tom amigável: "Tudo bem que já são 3 da manhã, mas já estás partindo para a agressão!". E mais tarde engatei um papo ótimo com esse amável rapaz. Jornalista, quase advogado, "meio metido em política" e mais uma porção de coisas. É claro que não poderia deixar de dar um fora (momentos Beth - não têm preço). Depois de dizer a um psiquiatra (sem saber que era): "Deus me livre! Psiquiatra é tudo louco!!!", soltei uma pérola bem pior. Falei a um político: "Político??? Credo!!! Vê se não bate a minha carteira!!!". Essa foi ótima (nada pessoal, amigo). Pensando agora sobre a minha aventura inicialmente solitária, extrapolaria os acontecimentos para a totalidade da minha vida. Enfrentar coisas que causam temor é sempre algo de bom que podemos fazer em prol de nós mesmos. Em vez de pensar "O que aconteceria se eu fizesse "X" coisa?", sempre tendo a cogitar o que deixaria de ocorrer se eu NÃO tivesse feito "X" coisa. Pode parecer inconseqüência, se analisado superficialmente. Não se trata disso. Diz respeito a detectar e superar limites, quebrar tabus (sobretudos os próprios, mais rígidos que os extrínsecos). Tenho questionado bastante algumas das minhas atitudes. Mulher que convida, mulher que chega, mulher que se revela...Breguíssima essa frase. Resolvi, a partir de hoje, obedecer à minha natureza. Sem culpas. Sem constrangimento. Ressuscitei aquela garotinha que marcava com o colega de aula no recreio para declarar sua paixão, com o coração saindo pela boca. Aliás, não tem sensação mais prazerosa do que essa. Não há nada mais gostoso do que se conquistar o que (ou quem) se quer. Sem psicopatia, é claro (estilo Glenn Close, em "Atração Fatal" - baixíssima tolerância à frustração). Saber o que/quem se quer (ou não, fundamentalmente), é um afago à auto-estima (ou ela própria?). Me recuso a viver "Como insetos em volta da lâmpada". É isso aí. Cazuza, tinhas toda a razão. Então, descansem em paz os mortos-vivos.